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  • José Leonídio

VERDADES INOCENTES

O ano exato não me lembro, alguma coisa em torno de 1957/1958. O mês me lembro bem, era dezembro. No armazém do seu Horácio, a Maria Fumaça comia os dormentes passando por dentro do presépio, montado sob as mantas de carne seca. Meu pai, como sempre neste período, comprara o mais alto galho de pinheiro e minha mãe montou uma bela árvore de Natal; o cheiro do pinho silvestre invadia a casa e o jardim.


Brincando na calçada do número 49 da Rua Laurindo Filho, sob o olhar atento de Dona Mocinha, a quem chamávamos de avó, brincávamos na espera da chegada do Natal. O único telefone das proximidades o 29.91.29 do armazém tocou, era um aviso para meu pai de que o dono da fábrica para quem prestava serviço estava vindo para conversar com ele. Claro que sobrou para mim, parei de brincar e corri até o 28 da Joaquim Norberto, onde o trabalhava.


A poeira de cedro cobria todos os seus poros, exalando um perfume que do qual até hoje não consigo me libertar. Do jeito que estava saiu, afinal o dono da Megazon nunca estivera com ele. Alguma coisa muito importante devia ser, mas o que? Meu velho pai quase não teve tempo de tomar um banho, pois logo depois um Buick super, preto, parou na nossa porta com o motorista de luvas brancas saindo do mesmo para abrir a porta para o seu João. Era este seu nome.


Angelina era uma menina de cinco anos, muito graciosa, tinha perguntas e respostas para tudo, filha de um casal afro descendente, morava na subida da Maracaju pelo lado da Imburana, mas como sua mãe prestava serviço lavando e passando roupas para muitas famílias próximas de minha casa, ficava sempre conosco nas nossas brincadeiras.


Quando Angelina viu o motorista abrir a porta para o seu João, falou para Dona Mocinha:


- Puxa, vovó, eu tenho pena deste moço, acho que tem problema nas mãos e precisa que alguém lhe abra a porta, deve ser tão ruim não poder fazer nada e depender de que façam para nós!


- Não, Angelina, esse moço não tem problemas. Ele deve ser uma pessoa importante e, por isso, o motorista abriu a porta para ele.


- Mas, vovó, às vezes nós estamos brincando e nós escolhemos quem vai ser o primeiro; ele é igual a nós, brinca como nós, bebe guaraná da mesma garrafa, come o mesmo bolo, se suja com sorvete igual a todo mundo.


- Minha querida Angelina, no mundo das crianças tudo acontece desta forma. No mundo dos adultos as coisas são diferentes, aqui a inocência de vocês revela a pureza do mundo, mas, quando nos tornamos adultos, deixamos tudo para trás porque novos valores parecem que vão fazendo com que esqueçamos, o que um dia já fomos, a pureza e a inocência que um dia existiu dentro de nós.


- Sabe, Vó Mocinha, acho que não quero crescer não, quero ser sempre do jeito que sou, pois sou feliz, brinco, corro, tenho meus amiguinhos. Eu não quero ser assim, não preciso que ninguém abra as portas para mim, tenho minhas mãos. Posso sorrir, cantar e até chorar.

Soltando uma lágrima falou:


- Quando eu crescer, vó, eu vou deixar de ser eu, de ser a Angelina, não quero não. Vó Mocinha, reza para eu não crescer e ficar sempre criança.

Dona Mocinha não sabia o que dizer, somente a abraçava.


Seu João que a tudo escutara, parado em frente à porta do carro, foi até ela, pegou-a ao colo e lhe disse:

Pode deixar, minha menina, eu vou rezar, e muito, para que você seja sempre o que você é, mesmo crescendo, que você continue a ser esta menina, bonita por fora e por dentro.


De dentro da casa de meu pai, o cheiro do pinho silvestre misturado ao do cedro, era a miscelânea ideal para perfumar os desejos de Angelina, a bela e inocente menina da Maracaju.



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