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PAS TOUJOR, PAS JAMAIS!

José Leonídio

Hoje é um dia especial na minha vida, diria que o dia do nascimento de meus mais de trezentos irmãos gêmeos, parturidos das entranhas da antiga Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil de uma só vez, em 3 de dezembro de 1974.


Ali, sob os olhares de mestres seculares a nós direcionados, tivemos as primeiras aulas no anatômico. A lição inicial foi o respeito ao nosso primeiro elemento didático de aula, o CADÁVER.


A ele sempre respeitamos e lhe prestamos nossa homenagem na oração ao cadáver em nossa formatura.


Nossos mestres nos ensinaram que em medicina, como na vida, pas toujour, pas jamais, ou seja, nem sempre, nem jamais. Aprendemos a presenciar o surgimento da vida, oriunda das entranhas da mãe, aprendemos a prolongar a vida a qualquer custo, porque a morte era a derrota de quem nasceu para tornar a vida eterna. Nos ausentamos quando não conseguimos nosso objetivo e dávamos as costas àquele que foi nosso primeiro professor, o corpo sem a energia vital, sem a vida, o cadáver, frio e emudecido para a sociedade.


Numa determinada ocasião, após me deparar com meu insucesso, o de prolongar a vida, pensando no erro da minha escolha porque não fora capaz de manter vivo aquele que tanto conversara comigo em vida? Sentado à beira do leito que acabara de ser esvaziado, procurava ser forte por fora, mas me afogava em lágrimas por dentro, uma mão pousou sobre meu ombro. Virei o rosto e ali estava meu mestre de psicologia médica, Danilo Perestrello.


Olhando fixamente em meus olhos, me disse:

- Não temos o controle sobre a vida, nem mesmo sobre a morte, pas toujor, pas jamais. Existem limites, e mesmo a estrada da vida tem limites, não há como ultrapassá-los. Fazemos o impossível, mas o milagre não nos foi ensinado. O que você viu hoje foi a morte física de alguém com a qual você aprendeu a conviver nos últimos dias de vida, você o confortou, deu-lhe o direito da palavra, o ouviu.


Sabias que sua doença estava associada a um limite na sua existência, mas, mesmo assim, você ficou ao lado. Ele partiu, sua morte física foi constatada num papel frio, que servira para que sua morte social seja deflagrada.


- Como assim morte social, só se morre uma vez?

- Esse é o seu engano, essa pessoa tinha família, tinha amigos, convivia na sociedade, e a estes é dado o direito de se despedir do falecido. É o que chamamos de morte social. Comunicamos à sociedade que oficialmente aquela pessoa que jaz ali sem vida, não mais faz parte do nosso núcleo de convivência, partiu numa viagem sem volta. A medicina tem princípio, tem meio, porém, ainda tem que aprender que existe o fim da vida. Assim como chegou, Danilo Perestrello se foi, sem nada mais dizer.


Guardei por todos estes anos, e lá se vai quase meio século, para dissipar esta lembrança, porém, veio induzida pelas 175.307 mortes ocasionadas pela SAR-COVID-19. Seus acometidos foram retirados do seu núcleo familiar, do seu convívio social, e não por falha humana, mas pela agressividade do vírus. Hoje não estão mais entre nós.


A estes se declarou numa folha de papel fria a morte física, entretanto, em nome da saúde pública, não lhes foi dado o direito da morte social. A sociedade não os viu, não os velou, não se despediu, não derramou sua última lágrima, só soube por uma comunicação a distância que fulano, beltrano ou sicrano faleceram.


A ausência da morte social é um fator importante para desacreditar nas medidas de controle na pandemia e no aumento dos índices de morbimortalidade da SAR COVID -19. Os acometidos que foram a óbitos fazem parte de uma listagem, de uma estatística fria que alimenta os meios de comunicação, porém deixaram a sociedade não pela porta dos fundos, mas por uma cova rasa com uma cruz em cima, sem testemunhas, muitas até sem seus parentes mais próximos. Pas toujor, pas jamais, assim me ensinou o mestre.


Para que a sociedade possa enxergar os 175.307 companheiros do dia a dia que se foram, é necessário que tenhamos consciência das suas mortes FÍSICAS, mas principalmente das suas mortes SOCIAIS, por mais difícil que seja admiti-las.



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