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  • José Leonídio

NUNCA ESTAMOS SÓS.

Texto escrito em Janeiro de 2020

Corria o mês de abril de 1969, meus dias se passavam todos na Faculdade Nacional de Medicina na Praia Vermelha. Lembro-me como se fosse hoje que ao fim de uma aula sobre anatomia do abdômen proferida magistralmente pelo Mestre Cardoso de Castro, um pequeno grupo o rodeou fazendo perguntas e mais perguntas. De repente o grupo se silenciou com a pergunta de um dos meus colegas que não me recordo quem:

- Mestre o senhor nos mostrou todos os órgãos do abdômen, suas funções, as camadas que o reveste, e disse também que a cicatriz umbilical era um vestígio de um órgão que se extinguiu com o nosso nascimento. Não seria natural que não ficasse nenhum sinal desta ligação que só existiu dentro do útero de nossas mães?

Cardoso de Castro, parou, pousou levemente suas mãos sobre o ombro do colega, olhou firmemente nos seus olhos e respondeu:

Meu querido colega, (não nos chamava de alunos e sim de colegas) sua pergunta tem todo um componente de verdade, se o órgão foi extinto porquê a permanência de um vestígio tão visível se aparentemente não tem mais nenhuma função?

Meu caro aí está o grande engano, nem sempre a ciência consegue decifrar os mistérios que compõem a vida e esta é um que ultrapassa nossos limites. Quando uma cicatriz ficou no nosso abdômen para toda nossa vida que só sumira quando não mais existirmos no nosso corpo físico, ao contrário do que pensamos, ela continha um objetivo, a de nos lembrar diuturnamente que NÃO ESTAMOS SÓS, temos junto de nós sempre alguém que por mais difícil que seja a situação nos dará o alimento que confortará nossa alma. Essa cicatriz vai além da nossa visão física, ela estará sempre dentro de nós, nos lembrando que não somos um ser isolado, fruto de uma experiência, não! Somos fruto de um coletivo onde nossa mãe, através da placenta, do cordão umbilical, nos deixou esta lembrança, e nos apresentou os que estão a nossa volta. Pense nisso, talvez esta seja a resposta maior que recebemos ao nascer, e que nos seguirá para sempre.

As palavras do mestre Cardoso de Castro me acompanharão por longo tempo, e pousaram nas gavetas do esquecimento, do passado. Hoje, não sei porque, essa gaveta se abriu e me vi em frente do meu querido mestre de Anatomia. Talvez hoje eu seja capaz de entender tudo que ele quis dizer, ela não falou que nossa mãe estaria sempre do nosso lado, junto a nós, não! O que talvez ele quisesse dizer naquele instante é que NUNCA ESTAMOS SÓS, temos sempre alguém nosso lado que da forma mais pura e sincera nos ajuda a desembaraçar nossos nós. Talvez dentro da sua espiritualidade, Cardoso de Castro era católico praticante, ele tentasse nos dizer naquele momento, que aquela estrutura resultante do milagre da perpetuação da vida fosse a forma encontrada por uma força superior para nos dizer exatamente isto, TU NUNCA ESTARÁS SÓ.

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