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  • José Leonídio

CONSTRUÇÃO

Pacientemente e num gesto repetitivo, tijolo a tijolo, era colocado um sob o outro, formando uma parede, não sem ajuda de mistura de terra, areia e cimento. Seu Margarido, pedreiro, artesão que a construía, tomava o cuidado de a cada instante usar o prumo.


Nesta época eu devia estar com sete anos e na fase dos porquês. Sentado, assistia tudo o que ele fazia. Minha curiosidade, natural dos pequeninos, quis saber o porquê um tijolo não era colocado exatamente em cima do outro. A resposta foi simples: é uma questão de amarração, o peso de um em cima de duas metades que estavam abaixo permitia melhor equilíbrio.


Quanto ao uso do prumo, a função era deixar a parede equilibrada e para que não houvesse desvio de lado algum. Num determinado momento começou a deixar um espaço entre os tijolos, imediatamente questionei a razão. Mais uma vez resposta foi simples.


O mundo é para ser visto, se não deixar uma janela para que possa vê-lo e senti-lo, quem for morar aqui ficará isolado e não saberá o que está acontecendo lá fora. Da mesma forma, deixou o espaço para a porta. As pessoas que aqui vierem morar têm que sair, conviver com as outras, ver o que se passa além dos limites da própria casa.


Essas lembranças não devem ter aflorado por acaso. Ver na minha mente o afrodescendente Margarido, com sua tez de um negro luzidio, fala mansa e paciência de monge a responder as minhas perguntas. Acredito que o momento atual me fez viajar no tempo e rememorar aquela passagem. Uma construção tijolo a tijolo.


Estamos num momento onde nossos muros, nossas paredes ruíram. Como se fosse um terremoto, a pandemia derrubou todas as barreiras que se colocavam; não foi seletiva, não respeitou palácios ou casebres. Pobres e ricos se viram frente a frente com a Covid-19.


Ainda me lembro das palavras do velho pedreiro, ao me dizer:


“O uso do prumo é para equilibrar a parede. Não pode haver desvio para lado algum.”


Acho que faltou a simplicidade do seu Margarido, faltou o bom senso, o equilíbrio. Uma pandemia como a de agora não tem lados, não tem ideologias. O vírus não tem filiação com partido. Ele é o inimigo comum que tem que ser combatido e as armas estão à nossa disposição, bastando ter consciência coletiva para usá-las.


Infelizmente no momento atual temos que ficar nas janelas da vida. Nossas portas só nos dão acesso aos nossos limites, afinal amor também possui restrições. O amor por si próprio, pelo próximo. Nossos tijolos têm que ser colocados, de forma que um equilibre o outro, para que possamos construir uma parede sólida.


As ações para combater o muro que enfrentemos são derivadas de uma política de estado e não de uma política de governo. As pessoas, os dirigentes, os políticos passam, mas as ações ficam e são elas quem contarão quem somos, quem fomos e qual o legado que deixamos.


Neste mais de um ano de erros e desacertos, não existem mártires da Covid-19. Existe, sim, um número que cresce a cada dia, o de contaminados e, principalmente, o de óbitos, em sua maioria anônimos.


Como me referi há um tempo, sem que tenha o direito da morte social. Um papel frio dá o direito a ser enterrado simplesmente. Quanto mais rápido, menos lembrança, virou somente um número na estatística do vírus.


Os tijolos de seu Margarido seriam para mim hoje as vacinas, que infelizmente não evoluem na mesma proporção da doença; a massa que os une, os cuidados, o isolamento, o álcool gel, as máscaras. Seu Margarido foi um exemplo. Na sua simplicidade me ensinou a respeitá-lo, a respeitar a vida, o direito de ir e vir, porém com os limites que cada momento exige.


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