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  • José Leonídio

CARNAVAL RETRÔ


O som metálico do agogô na mais pura cadência do samba ecoava por todo o vale onde se situa Cavalcanti. Naquele fim de tarde, um dos melhores ritmistas da Em Cima da Hora, seu Tote, deixava escorrer pela face moldada pelo tempo lágrimas sentidas por não estar na avenida com a escola de samba que viu nascer e crescer. A tisica[1] o consumia dia a dia.


Para acalmar a tristeza, sentou-se na pedra mais alta no fim da Rua Tumucumaque, e com seu instrumento inseparável dava ritmo no balançar das cadeiras às baianas que desciam das ruas Aquiráz, Imburana, Iririri e adjacências para o desfile da escola.


A saúde não o permitia estar na frente da bateria, mas não o impedia de estar junto a todas e a todos. O tilintar do seu agogô, tinha certeza, acompanharia cada um. Desta forma, também estaria presente na avenida.


Eu nunca esqueci esta passagem, foi mesmo muito marcante para mim. Ainda hoje fecho os olhos e o vejo e ouço sua marcação para a descida das baianas. Talvez o que seu Tote nunca soube é que seu gesto não foi em vão, a escola desfilou como nunca, arrebatando aplausos e a primeira colocação; ele estava presente sim, dentro de cada componente.


A história do seu Tote me persegue há alguns dias, talvez para me lembrar de que, mesmo na adversidade, temos espaço para minimizar os efeitos que podem causar dentro de nós. Em uma das minhas obras literárias, “A Casa dos Deuses – Os Guardiães”, relato o fato de em meio a grande epidemia de febre amarela em 1850, na Guanabara, nos dias profanos, ou seja, no carnaval, surgir a figura do Zé Pereira, com seu bumbo atraindo o poviléu, formando um bloco saindo pelas ruas da cidade.


Talvez aquele não fosse o melhor exemplo a ser dado. Porém, naquela época, não se tinha noção da sua origem, de como preveni-la: Zé Pereira só queria era dar um pouco de alegria ao povo humilde e sofrido, e conseguiu. Os anos passaram, novas epidemias surgiram e aos poucos a ciência foi esclarecendo sua origem até chegarmos a vacina contra a febre amarela.


O tempo passa, entretanto, os exemplos ficam para a posteridade. Não é a primeira vez que o mundo é assolado por uma pandemia. Parece que existe um marcador no tempo que é disparado, de cem em cem anos, com o objetivo de mostrar a todos, sem exceção, que somos iguais, temos princípio, meio e fim, não importa nossa condição social, religiosa, étnica. A gripe espanhola foi um exemplo que ceifou mais de 50 milhões de vidas de todas as camadas sociais.


Há exatamente um ano, milhares de seu Tote desfilaram na Avenida. A Em Cima da Hora conquistou o direito de voltar ao grupo de acesso, mas, sem que percebêssemos, a profecia dos 100 anos começava a se fazer presente. Com todo o conhecimento da ciência, era algo novo que não se tinha noção de como combatê-lo.


Negar sua existência, sua agressividade, foi uma atitude insana de muitos. Que custou e ainda custa a vida de quase 250 mil brasileiros.


Um novo Carnaval chegou e o exemplo do seu Tote está mais vivo do que nunca. Ele não podia pela doença que o consumia, nós, hoje, sabemos que podemos abrir mão de um carnaval para que, no ano que vem estejamos firmes, saudáveis na avenida, nos bailes, com nossas fantasias e alegrias costumeiras.

Deixemos a ciência fazer a parte dela porque ela é aliada de nossa alegria e não nossa inimiga.


Que tenhamos um CARNAVAL RETRÔ, no nosso isolamento, escutando marchinhas e sambas enredos dos carnavais passados, fazendo nossa sala de salão, com confetes e serpentinas, vendo os melhores desfiles das escolas de samba, curtindo em família. A maior alegria deste carnaval é estarmos vivos, porque só assim poderemos assistir aos carnavais que estão por vir.


VACINA SIM, PORQUE ESSE É O ÚNICO PASSAPORTE PARA A VIDA E PARA OS PRÓXIMOS CARNAVAIS.


[1] Tísica - Tuberculose

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