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SOMOS SERES ATÁVICOS

José Leonídio

Nada nos atrai mais desde a idade da pedra do que o fogo. Suas labaredas quase que nos hipnotizam, passamos um bom tempo admirando o bailar delas transformando em imagens as formas que tomam, na medida em que aumentam ou diminuem.


Suas chamas nos aliciam, nos agrupam, ficamos no seu entorno, seja para nos aquecermos, para conversarmos, ou mesmo ficar em silêncio, escutando o espocar das madeiras sendo consumidas ou para admirar as fagulhas.


Estamos num mês onde o fogo alimenta corações e ilusões. As fogueiras tão comuns a esta época trazem no seu contexto uma lembrança religiosa e são acesas pelos quatro cantos do Brasil e, por que não dizer da terra?


Não é simplesmente a queima do lenho, a tradição revela que cada santo reverenciado tem sua fogueira própria. A quadrada está associada ao milagroso e casamenteiro Santo Antônio. A de São João é redonda e a de São Pedro, triangular. Como elemento comum, o fato de serem acesas nas portas ou nos quintais das casas, congregando as famílias.


A alegria está presente no colorido das roupas, dos enfeites, das quadrilhas, na comida farta típica de junho. É tempo de hibernar, estamos no inverno, e nada nos aquece mais do que a energia ao sermos tomados pelo calor das fogueiras.


Até nos arriscamos a pulá-las, voltamos a ser crianças, pelo menos por alguns poucos dias deste mês festeiro.


Quando todos pensam que o fogo se foi, seu calor se mantém assando as batatas doces, o aipim ou a macaxeira, e também a nós mesmos. Aprendemos desde pequeninos que este é um mês festeiro. Que meninos não se lembram de suas calças remendadas, suas camisas de xadrez, de seus bigodes e costeletas pintados em seus rostos, seus dentes enegrecidos?


Que meninas não vestiram suas saias de chita coloridas, colocaram tranças falsas, em rostos e lábios pintados, para dançarem os baiões, xotes e quadrilhas, nos arraias espalhados em todos os cantos, culminando com seus casamentos na roça? Noivo, noiva grávida, pai da noiva com trabuco na mão e o padre dizendo: “Em nome do cravo, da rosa e do manjericão, eu caso Rosinha com Chico Lambão.”


Mesmo adultos mantemos a tradição, porque está dentro de nós, faz parte de nossa formação religiosa e cultural. Muitas cidades têm nestes dias festas maiores, fogueiras de 30 metros de altura, queima de fogos e a tradicional procissão no início da noite. O São João no Nordeste é aguardado o ano inteiro.


Este é o segundo ano que deixamos de comemorar o mês festeiro, nossas fogueiras nem foram acesas, as portas de nossas casas estão trancadas como se não quiséssemos deixar entrar o mal maior, que assola todo o mundo, e principalmente entristece o nosso povo, com tantas perdas que se acumularam neste período.


Como gostaríamos de nos juntar em torno do requeime dos galhos e troncos, mas mesmo suas labaredas não serão capazes de nos proteger, de eliminar os riscos advindos do vírus. Nossa alegria está contida, vivemos tempos sombrios.


Como gostaríamos de poder acender uma fogueira dentro de nós que nos aquecesse e nos protegesse.


Neste momento a única fogueira que podemos acender, para que suas labaredas se façam presente dentro de nós, tem nome, e a chamamos de VACINA. Vem acompanhada de máscara e álcool em gel, da desinfecção das mãos, e de tudo que possa chegar até nós.


Esta é nossa única esperança: que em junho do ano que vem nossa alegria festeira volte, e muito mais forte, que as fogueiras estejam presentes energizando nossos corpos e nossas almas, que o colorido do mês junino faça brilhar de novo nossos olhos embaçados pela tristeza. Afinal somos seres atávicos.



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