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José Leonídio

DA JANELA, VÊ-SE O CORCOVADO, O REDENTOR. QUE LINDO!

Pela manhã, com a brisa a soprar, Clarice corria tangente ao mar do Arpoador. Fones no ouvido escutando Garota de Ipanema, sua música preferida, na voz de Astrud Gilberto. O movimento, embalado pela canção, balançava seus cabelos dourados pelo sol dos primeiros dias de fevereiro de 2015.


À sua frente, a visão do morro Dois Irmãos e do Gigante Deitado, a Pedra da Gávea. À direita, abençoando a cidade, o Cristo Redentor. Neste cenário, uma folha baila no ar e cai aos seus pés; o outono ainda não se fazia presente, enquanto o verão se foi sonhos.


Clarice era nascida e criada em Ipanema e acostumou-se com a vida na beira mar, onde o horizonte se perde em curva e o olhar não mais consegue enxergá-lo. Sua maior paixão era assistir o pôr do sol na Pedra da Gávea. A emoção de vê-lo cair sobre o oceano, deixando um rastro que podia ser visto multicolorido, se via refletida nas lágrimas fortuitas que corriam pela face de Clarice. Foi ali que, num fim de tarde, conheceu Nelson, um típico carioca amante do mar. Nem branco, nem moreno Nelson tinha um tom bronzeado pelo sol. Os dois logo mostraram que possuíam as mesmas afinidades: adoravam o mar, o sol de Ipanema e o arrebol visto do Arpoador.


Clarice era oriunda de uma família de imigrantes portugueses de Gondomar, inicialmente ligados ao comércio de joias de ouro e prata e depois dedicados à venda de roupas e acessórios para mulheres com várias lojas na Zona Sul e na Barra da Tijuca. Por mais que seus pais, José Rodolfo e Maria da Conceição, insistissem que se graduasse em Administração de Empresas, ela nunca quis.


Nascida na década de oitenta do século passado, preferiu estudar Comunicação e hoje se dedicava a dar assessoria para grandes empresas na área de Marketing, na qual era reconhecida por sua capacidade profissional. Exigente quanto aos seus compromissos profissionais, acordava cedo para correr no calçadão, cumprimentar o sol e mergulhar de corpo e alma, mais de corpo com certeza. Tinha ainda o hábito de malhar na academia e de estar nos fins de tarde no Arpoador para se despedir do dia. Esses eram rituais sagrados na vida de Clarice.


Gostava da noite, muito comunicativa tinha uma rede social extensa, não lhe faltavam convites para eventos. Nunca teve um envolvimento ou mesmo um relacionamento de amor que adentrasse sua couraça de mulher forte e moderna. Era livre, amava o amor livre, sem amarras. Desgarrou-se dos pais assim que se tornou independente financeiramente.


Morava sozinha num apartamento na Rua Vinícius de Moraes, o que sempre foi seu sonho. Apesar de na sua adolescência sofrer a influência das bandas de rock e das músicas eletrônicas, guardava dentro de si o balanço da bossa nova, sentia-se uma Garota de Ipanema do século XXI.


Nelson, por sua vez, era filho único de Seu Douglas e Dona Cleide, originário de família de classe média de origem escocesa, que aportaram na Guanabara com Dom João VI ainda no século XIX. Morava em Botafogo com os pais septuagenários. O pai era advogado, uma tradição secular da família, chegando a procurador do Estado da Guanabara. Sua mãe foi até o antigo Científico, quando largou os estudos para se casar e tornar-se dona de casa.


Apesar de todo o incentivo do pai em perpetuar a memória causídica da família, ele não quis cursar a faculdade de Direito, preferiu áreas mais modernas, mais ligadas à contemporaneidade cibernética. Formou-se em Engenharia e enveredou pelo caminho da Informática. Fez mestrado e doutorado e era considerado um dos melhores programadores do mercado. O mundo de Nelson, além da Informática, também sempre foi o mar. Formou-se pela natureza em surfista, convivia com as ondas diariamente no Arpoador. Quando não estava dando assessoria em programação de computadores para as grandes empresas, estava no mar; pela manhã, no surf e, à tarde, praticando outra de suas paixões, o kitesurf.


Clarice e Nelson, dois mundos diferentes, porém com o mar como elemento comum, mas não o mar e, sim, o Mar do Arpoador, no qual o sol se põe com toda sua pujança, na sua maior beleza, arrancando lágrimas, palmas de bravo! Bravo! Bravo! O sol se punha como se fosse um ator no palco ao fim de uma inesquecível apresentação, capaz de fundir corações e forjar paixões. Mesmos os mais céticos, que enxergam o amor como duas vogais e duas consoantes que se unem para formar uma palavra etérea, ali, na Pedra do Arpoador, ao pôr do sol, se conscientizam de que a união destas quatro letras carrega muito mais energia do que somente uma palavra dita ao léu. É muito mais que isso: é um sentimento que surge de dentro de si, amalgamada por uma emoção tão forte que funde muitas vezes corações.


Assim aconteceu com Clarice e Nelson, que se encontraram num arrebol do Arpoador, depois de participarem do desfile da Banda de Ipanema por toda orla do bairro naquele Sábado de Carnaval, em 14 de fevereiro de 2015, quando era celebrado também o centenário do ator Grande Otelo. Clarice estava fantasiada de Chapeuzinho Vermelho e ele, de Lobo Mau. Muita alegria, muitos sorrisos, banhos de mar de fantasia ao som da fanfarra moderna, com a mistura de sons metálicos e percussão; as marchinhas e os sambas enredos iam se alternando, levando ao delírio carnavalesco a multidão que tomava quase toda a Avenida Vieira Souto e parte da Delfim Moreira.


Com a adoção do horário de verão, o sol adormecia mais tarde, o que possibilitava aos amantes vê-lo se pôr no horizonte das Pedras do Arpoador e extravasar toda a sua energia na alegria contagiante da Banda de Ipanema.

Clarice Chapeuzinho Vermelho e Nelson Lobo Mau sentaram lado a lado, na mesma pedra, para contemplar esse sol. Quando um viu como o outro estava fantasiado, começaram a rir, representavam ali, ao vivo e em cores, a fábula que tanto ouviram e assistiram. Faltava apenas a Vovozinha. A este pôr do sol, veio outro, depois outro e mais outro e, quando viram, Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau, ao contrário do final da fábula, não conseguiam mais estar separados nos arrebóis da vida.


Dezembro, início do verão de 2016, véspera de Natal, e o presente chegou em forma de pedido de casamento. Nelson estava perdidamente apaixonado por Clarice, queria tê-la ao lado dele por toda uma vida. Ela representava tudo para ele, era a mulher que sempre sonhara: inteligente, tinha argumentos para responder todas as suas questões, amava música, cinema, gostava de teatro, era amante da literatura, principalmente de grandes autores.

Ainda como mulher, era insuperável, dominava-o de tal forma que esquecia todo e qualquer outro envolvimento.


Clarice, que sempre foi independente em suas atitudes e decisões, foi pega de surpresa porque o pedido foi feito da maneira mais formal que podia imaginar, na casa de seus pais, com Nelson pedindo a José Rodolfo, o pai de sua pretendente, na Noite de Natal, a permissão para se casar com o amor de sua vida.


A passagem para Ano-Novo aconteceu na casa dos pais de Clarice na Avenida Atlântica. Entre tacas de champanhe, assistiram os quase 25 minutos de queima de fogos, que, para Clarice e Nelson, pareciam comemorar a felicidade dos dois.

Aquele Carnaval foi diferente. Ao usarem a mesma fantasia do Carnaval anterior, Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau desfilaram juntos pela Vieira Souto ao som da Banda de Ipanema, tomaram banho de mar fantasiados e terminaram onde se conheceram, assistindo ao pôr do sol do Arpoador.


Do anel de noivado até a aliança de casamento, passaram-se poucos meses. Por ser sonho da mãe de Clarice, Nelson e a moça casaram-se no mês de maio, na Igreja de São José da Lagoa, com as bênçãos do Padre Omar. Pela convivência social e profissional do casal, tiveram uma recepção à altura, digna de um casamento de príncipes no Copacabana Palace. O que seus amigos não deixaram passar foi exatamente a presença de Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau em plena recepção. Quando chegaram ao hall do hotel os dois personagens estavam esperando e se fizeram presentes durante toda a recepção, indo de mesa em mesa, dançando com os nubentes.


O consenso entre os dois, pela proximidade do mar e da Pedra do Arpoador, é que iriam morar no apartamento da Vinícius de Moraes. Por insistência de seus pais a lua de mel seria em Portugal, nas Quintas da família, em Melros e Gondomar. A recepção ainda não tinha terminado quando os dois se retiraram. Todos pensaram que o casal passaria a primeira noite de casados no apartamento. Qual o quê!


Mal o carro que os conduzia os deixou na porta do edifício, Nelson cumpriu o fetiche do casal, pegou seu segundo amor, uma moto de mil cilindradas e, sem retirarem as vestes do casamento, foram passar a primeira noite onde se conheceram e onde seu amor seria eternizado, a Pedra do Arpoador.


Ali, com a lua cheia como testemunha, estouraram uma champanhe, brindando o amor e a paixão. O Lobo Mau soltou os 150 botões do vestido nupcial da Chapeuzinho Vermelho, que ao deixá-lo deslizar sobre seu corpo forrou aquele que seria o ninho para uma paixão desenfreada sob o clarão da lua, a única testemunha presente.


Se amaram na razão do cio, do calor dos corpos, se entregaram totalmente. Naqueles instantes, não havia homem, nem mulher. Eram dois que se adentravam, formando um só que se alternavam, que se invadiam em todos os caminhos que o amor e a paixão permitem.


Sem pedir permissão, o sol veio render sua homenagem aos dois, foi o sinal para que Lobo Mau e Chapeuzinho Vermelho, Nelson e Clarice, depositassem suas juras no santuário dos amantes, as águas do Arpoador.


Ali foram abençoados pelo azul do mar de Ipanema. Quando voltavam para casa, um violão ébrio solava para seu dono recitar, como se fosse um presente para os dois, o “Soneto da Fidelidade”, da poetinha do amor, Vinícius de Moraes:


“De tudo, ao meu amor serei atento antes

E com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento”.

Um longo beijo seguido de votos de amor eterno precederam o ronco da moto de mil cilindradas. Ungidos pela lua dos amantes, pelo calor do sol nascente, pelas águas do Arpoador e de Ipanema, tendo como pano de fundo os versos do poetinha, o leito dos dois, cuja janela emoldurava o Corcovado e o Redentor, foi o palco da peça de amor vivida e assistida pelos dois, que viraram um só, levando-os ao sono da paixão incontida, entrelaçados na fusão do desejo.


Os meses foram se passando e a chama da paixão entre Clarice e Nelson só aumentava. Em determinados momentos até parecia que tinham se conhecidos naqueles dias, desmedida eram suas trocas de juras, estivessem onde estivessem. Correr pelas manhãs e frequentar a academia continuavam no roteiro diário de Clarice, chovesse ou fizesse sol. Pegar ondas pela manhã e kitesurf no fim das tardes era sagrado para Nelson.


O pôr do sol do Arpoador, para os dois, era intangível, ali se conheceram e volta e meia, acompanhados da sua companhia preferida, a champanhe, se amavam nas madrugadas.


Continuavam profissionais competentes, cada um na sua área. Neste ponto, eram independentes, um não se envolvia nas atividades do outro. À noite, shows, cinema, teatro ou mesmo assistiam filmes em casa, o que era do agrado dos dois.


No primeiro Natal após terem se casado, fizeram questão de passar no apartamento onde moravam, trazendo seus pais para compartilharem daquele ar de felicidade que fluía por todos os cantos.


Por tradição desde quando ainda era criança, a passagem do ano velho para o ano novo foi em Copacabana no apartamento dos pais de Clarice, na Avenida Atlântica, ao lado do Copacabana Palace. Da residência, assistiram ao espetáculo da queima de fogos e, mais do que isso, apesar de católicos praticantes, renovaram suas esperanças de prosperidade e saúde para o ano seguinte, levando flores brancas para Iemanjá, a rainha do mar. Pularam sete ondas, todos obviamente vestidos de branco. A champanhe e as taças de cristal os acompanharam na praia. Ali, sob a energia do novo ano que nascia, trocaram juras de amor eterno, pena que não podiam colocar em prática a fantasia que os unia, se entregarem na entrada do novo ano, na Pedra do Arpoador. Ver o sol nascer e ungir o amor que os enlaçava.


Um novo ano iniciou e a rotina do casal não se alterava, muito mais unidos do que antes, numa paixão que transcendiam todos os limites, chegava a causar inveja a todos. A rotina do dia a dia não fazia parte do roteiro traçado por Clarice e Nelson. Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau vestiam suas fantasias na Banda de Ipanema, porém estas também os acompanhavam em seus momentos de entrega, nos quais a paixão se sobrepunha e os corpos se atraiam como ima de amor.


A impressão que deixavam era que correr no calçadão de Ipanema, na academia, pegar ondas e bailar ao sabor dos ventos no mar de Ipanema no kitesurf, enchia-os de ânimo para viver a vida intensamente numa crescente de suas rotinas, costumeiramente acorrentados pela Pedra do Arpoador. Sentar nas rochas aquecidas pelo sol no fim da tarde era um convite a mantê-las aquecidas com o calor de seus corpos.


Profissionalmente, o que se viu nestes anos de união foi um crescimento em suas atividades. O que transparecia era que os dois, além de se complementarem no envolvimento amoroso, também influenciavam no desempenho de cada um. A interação profissional com interpretações diferentes era absorvida e permitia que apresentassem propostas com visões integradas e diferenciadas, o que agradava a quem os contratava.


Quando se ama parece que os dias ficam mais curtos, a ansiedade do estar junto faz o tempo acelerar. Os meses passavam sem que percebessem, quando viram outro ano chegava, com renovações de amor eterno. Clarice e Nelson se envolviam em todas as situações, não havia limites. Podiam dizer que se houvesse um paraíso no Rio de Janeiro, nele morava Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau, em plena Ipanema. O tempo foi passando e nada mudava no horizonte do casal, pelo contrário.


Correr no calçadão de Ipanema, malhar na academia, surf, kitesurf, pôr do sol no Arpoador, Banda de Ipanema, além dos fetiches do Lobo Mau e da Chapeuzinho Vermelho, eram o motor que alimentava o amor e a paixão do casal. Quanto mais juntos ficavam, mais aumentava a atração de um pelo outro. Esta felicidade era de dar inveja a qualquer um, porém só eles tinham o segredo para tanto enlevo.


Final de outono de 2018, início de junho, naquela manhã Clarice amanheceu indisposta, com os seios muito doloridos. O perfume que Nelson usava depois do banho e que mais a agradava, ou melhor, que despertava a fêmea que tinha dentro dela, a fez correr para o banheiro e botar para fora o pouco de café que tinha tomado. Foi imediatamente socorrida pelo marido. Mas, quanto mais se aproximava, mais nauseada ela ficava. Isto nunca tinha acontecido.


A preocupação de Nelson foi tanta que desmarcou todos seus compromissos e levou-a imediatamente a uma clínica de emergência, ali mesmo em Ipanema. Qual não foi a surpresa dos dois quando depois de um exame de ultrassonografia para ver se havia algum outro comprometimento que levasse a este quadro, uma vez que não tinha outros sintomas que fizessem o médico pensar em coisa mais grave. O que o exame revelou foi uma gravidez de um mês e meio. Isto, sim, explicava todo aquele quadro.


Voltaram para casa, um olhando para o outro, sem saber o que dizer. Clarice era muito cuidadosa em relação a engravidar, antes de casar controlava com seu aplicativo no celular, depois passou a utilizar o chamado anticoncepcional da mulher moderna, aquele que interrompe a menstruação.

Nelson tinha certeza que tomava todos os dias a pílula, ele mesmo avisava, bem como o despertador do celular de Clarice, que não se esquecia de lembrá-la porque não estava no planejamento dos dois uma gravidez naquele momento.


Depois de muito conversarem chegaram à conclusão de que se reestruturariam e, se assim foi determinado pela natureza, assim seria. A única coisa que não entendiam era como pudera acontecer. Era um momento novo na relação entre Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau.


O esclarecimento veio na primeira consulta com o obstetra. Clarice tinha feito algumas semanas antes um tratamento dentário e o dentista prescreveu um antibiótico por uma semana, porém se esqueceu de avisar que se precavesse, pois segundo as palavras do médico o remédio poderia alterar a eficácia do anticoncepcional. Resultado: gravidez com previsão de nascimento para o final de março. Depois de muito conversarem, programaram um jantar para seus pais, sem que dissessem o motivo. Foi a forma que encontraram de comunicar, ao mesmo tempo, às duas famílias que seriam avós, sem nenhum melindre dos dois lados.


Tudo organizado, com Clarice tendo melhorado dos enjoos. Ao fim do jantar Nelson e Clarice convidaram seus pais para assistirem uma mídia feita pelos dois. Sentaram-se e quando as imagens começaram a aparecer na televisão e o som acelerado do coração do futuro bebê chegou aos ouvidos dos presentes, uma pergunta se fez ao mesmo tempo e a quatro vozes:


- Vamos ser avós?

Os dois, abraçados, responderam afirmativamente que não esperavam para aquele momento, mas ele ou ela foi mais esperto do que o casal. A explosão de alegria, misturada a lágrimas e abraços, foi comemorada com o espocar de uma legítima champanhe. Mesmo com água na boca, Clarice brindou com água mineral francesa para não fugir aos costumes.


Com muito custo, e sem melindrar ninguém, Nelson e Clarice foram levando a gravidez, deixando claro que estavam reformulando tudo para a chegada do bebê. O apartamento tinha três quartos, era só decorar e equipar um deles para recebê-lo. A gravidez em momento nenhum impedia Clarice e Nelson de cumprirem suas rotinas. Ela só teve que se adaptar a cada momento da gestação e da mesma maneira Nelson o fazia. Ele não abria mão do surf pelas manhãs e do kitesurf de tarde. Assistir ao pôr do sol do Arpoador juntos era sagrado.


Pela primeira vez nestes anos de união, Chapeuzinho Vermelho desfilava grávida, com sua barriga à mostra, na Banda de Ipanema, e acompanhada do envaidecido Lobo Mau. Mesmo estando no último mês de gravidez, isso não os impediu do banho de mar à fantasia e de aquecer as pedras do Arpoador com o calor de suas paixões. Mesmo no fim da gravidez, lá estavam, no seu recanto de amor preferido, provavelmente seu bebê viria ao mundo ungido pela energia mágica que os fez se encontrar e se unir.


Meses antes, era novembro. A primavera, com seu sol dourado e suas flores, coloria a cidade. Desde que entrou no sexto mês da gravidez que Clarice não mais andava na moto. Chegou o verão e ele a aquecia, Clarice nunca esteve tão bela como agora, mantinha sua forma, controlava sua alimentação, e esguia como sempre foi, do alto dos seus quase 1m70, parecia uma modelo de revistas de gravidez.


Nelson não cansava de admirá-la, a gravidez só fez aumentar a atração que dispensava à sua amada. Como os dois eram afeitos a pequenas gravações e montagens, formando mídias que arquivavam contando a história de um amor eterno, o mesmo aconteceu na gravidez. Por ideia de Clarice, uma vez por semana ficava nua, de perfil, atrás de um biombo translúcido e Nelson filmava a silhueta da mulher por 30 segundos, sempre na mesma posição. No fim de oito meses, editaram pela primeira vez e, abraçados, choraram. A gravidez evoluía como quando uma flor se abre. A rotina dos takes continuou e se encaixariam com as imagens do nascimento, num registro do fruto do amor dos dois.


Num fim de tarde, na última semana de março, os dois estavam assistindo ao pôr do sol no Arpoador quando Clarice sentiu uma fisgada, seguida de uma cólica; algum tempo depois, mais outra e, na sequência, outra. No início nada falou, porque pensou que era decorrente dos chutes do bebê, porém, na medida em que as dores foram se tornando mais intensas, não teve jeito. Nelson ficou lívido e foi ela quem o acalmou. Sistemática como era tudo estava planejado.


Entre a primeira cólica e o nascimento foi tudo muito rápido. Não era meia-noite ainda quando, pela primeira vez, Maria Luiza abriu os olhos para enxergar o mundo e soltou um choro que fez Nelson e os avós se emocionarem e chorarem. Clarice foi perfeita na parturição e agora tinha sua filha nos seus braços. Entre lágrimas e sorrisos de alegria e contentamento, Chapeuzinho Vermelho era mãe e Lobo Mau, o vaidoso pai.


A chegada de Maria Luiza mudou a rotina do casal. Acostumados a liberdade individual nas suas atividades diárias e a paixão aquecida pelo pôr do sol, Clarice foi se amoldando a rotina de ter mais um na família, com quem teria que dividir tempo e espaço. Nelson colaborava o máximo possível, porém compartilhar sua rotina diária entre prazer, trabalho e a responsabilidade de ter uma família não lhe agradava. Lobo Mau foi se afastando de Clarice. Por mais que se sentisse feliz em ser pai da bela Maria Luiza, o surf e o kitesurf não saíam da sua agenda diária. O que mais o incomodava era ter de dividir seu tempo entre Clarice e Maria Luiza.


Desde que Malu nascera, era assim que a chamavam, Nelson assistia ao pôr do sol em outras companhias que não a de Clarice. Isto o desagradava muito. Por onde andaria sua Chapeuzinho Vermelho?


Passados três meses do nascimento de Maria Luiza, a rotina diária de Clarice, tal como antes da chegada da bebê, acabara. A mãe se concentrava, então, na maior parte do tempo a dar atenção para a filha. Cuidava da menina em tempo integral, mesmo tendo uma auxiliar, e isso lhe consumia grande parte do dia.


Amamentar ocupava quase todos os seus horários, principalmente nas madrugadas, que a deixavam esgotada o resto do dia.


De uma coisa não podia se queixar, ofertar os seios à sua filha era totalmente prazeroso, bem como sentir o calor de Malu junto ao peito e vê-la crescer a cada dia. Clarice esquecera totalmente de seu Lobo Mau.


Nelson, por sua vez, sentia esfriar dia a dia a relação com a mulher que agora era mãe acima de qualquer situação. Por mais que amasse a mulher e a filha, parecia que tinham colocado um biombo intransponível entre os dois. Clarice se mostrava distante. Aquela chama que os aquecia e que os transformavam em amantes sem limites desaparecera. Não o procurava mais, era toda dedicação para Malu. Em certas horas sentia ciúmes da filha, da relação da bebezinha com a mãe. Parecia que esta tinha lhe roubado sua parceira preferida.


Em alguns momentos, depois de trocar carícias e palavras amorosas, dava a impressão que Clarice estava voltando de uma longa hibernação, mas em instantes ela saía da entrega total para a vigília absoluta. Ao menor vagido de sua filha, abandonava tudo e ia ao seu encontro, deixando Nelson inerte, desejoso das carícias de sua fêmea. Era trocado pela pureza de alguém que não tinha a menor noção do quanto sua chegada separara a esposa de seu marido.


À medida que os dias foram se passando, o que poderia ser um biombo foi se transformando numa parede invisível entre Clarice e Nelson. Mesmo sendo aquele o ano no qual a família teria a alegria de uma criança no Natal, percebia-se no ar que havia um clima diferente daquele em que Nelson pediu Clarice em casamento e de todos os outros que se seguiram. As famílias resolveram se unir em torno da neta e a comemoração, como de rotina, foi na residência do casal. Malu, socializada com os avós, pulava de colo em colo.


As luzes do Natal faziam brilhar os olhinhos de Maria Luiza. Percebia-se que apesar de estar junto, o casal se mostrava distante. Ela bem mais próxima da filha, ele envolvido com seus pais na maior parte do tempo. O Natal passou, a alegria dos avós se manteve, mas a distância entre os dois aumentava.

Um ano novo com toda a alegria e esperança de dias melhores se apresentou com o espocar de fogos de artifícios iluminando o céu de Copacabana, que se mostrava multicolorido em toda a orla. As praias de Ipanema e Copacabana estavam lotadas, numa mistura de esperança e fé. As rolhas dos proseccos voavam pelos ares. A champanhe, tradição da família, os fez brindar a entrada do novo ano.


Malu fez a rotina da casa mudar: toalhas foram retiradas das mesas, tomadas foram tapadas para evitar choques. Onde Clarice estava junto estava sua filha. Aos poucos o que todos percebiam era que desde a chegada de Maria Luiza, o fruto de um amor em constante chama, do desejo do Lobo Mau pela Chapeuzinho Vermelho, parecia ter recebido um balde de água fria, reduzindo-o a poucas brasas ou, talvez, cinzas. Nelson, por sua vez, se afastava aos poucos de suas responsabilidades. Preferia as ondas no surf o no kitesurf a ter que dividir seu tempo entre mãe e filha, sem recompensas.


O vulcão que o envolveu e consumiu, e que era a razão pela qual mais preso ficava de Clarice, essa mulher dos seus sonhos que unia inteligência e volúpia, ficara no passado, ou melhor, até o nascimento da filha deles. O ambiente dentro de casa estava ficando insuportável. Nelson começou a sair mais cedo e a voltar mais tarde. Por sua vez, Clarice saía com Malu para andar no calçadão de Ipanema pela manhã cedo e reclamava com o marido que, mesmo nos finais de semana, estava sempre só.


Passaram a ser raras as vezes que Clarice ia à academia, o que chamava atenção de suas amigas. Ela nunca foi de deixar de frequentar.

O mês de fevereiro era só alegria do lado de fora do apartamento de Clarice e Nelson, porém a relação entre os dois ficava cada vez mais distante. Sábado de Carnaval, Banda de Ipanema, começa seu desfile e o som do surdo e dos metais invadem o ambiente. Ela se lembra do primeiro encontro da Chapeuzinho Vermelho e do Lobo Mau.


Agora, com a presença de Malu, tinha que abrir mão do que tanto gostava, era uma questão de escolha, mais do que isso, de prioridade. Foi à janela e viu quando Nelson saía, sem nada lhe dizer, com sua fantasia de Lobo Mau. Soluçou, uma lágrima escorreu face abaixo, olhou no armário. A fantasia dela estava só, assim como ela. Chapeuzinho Vermelho estava adormecida no cabide e dentro dela.


A proximidade do primeiro ano de nascimento de Maria Luiza mexia com a família, principalmente com as avós, que exigiam uma grande comemoração, afinal era a primeira neta para as duas. Clarice não queria, além de não ter clima entre o marido e ela, achava que aniversário de um ano era mais para os convidados do que para a criança, queria somente um bolo em família. Quando

Malu pudesse desfrutar junto com as outras crianças, aí, sim, seria marcante para a pequena. Era um gasto, no ponto de vista da mãe, desnecessário.

Nelson, por sua vez, não demonstrava qualquer reação com o aniversário da filha.


Por ele, a data passaria em branco, comemorar o quê? Desde o nascimento dela, passara a ser um mero coadjuvante naquela casa. Cada dia que passava ficava mais isolado. Seu relacionamento com Clarice eram migalhas de um amor que se esvaziava, na mesma medida em que os dias iam passando. Não tinha qualquer incentivo para comemorar nada. Na verdade, não via mais como reerguer o sentimento que alimentara durante todo o tempo e, atualmente, era a única lembrança que restava.


As notícias vindas da China e da Europa em fevereiro de 2020 falavam de epidemia causada por um vírus chamado corona e que teve início em novembro passado em Wuhan, uma cidade chinesa. O vírus se espalhava como rastilho de pólvora e começava a chegar a Europa. Pela previsão dos entendidos no assunto, não tardaria a chegar as Américas; o número de doentes duplicava a cada dia, obrigando as autoridades dos países a adotarem o isolamento das famílias como forma de prevenção.


Era a quarentena que, segundo os especialistas da Organização Mundial de Saúde, seria a maneira mais eficaz de evitar a propagação do coronavírus. O maior problema da doença é que acometia seriamente a população mais idosa e aqueles que conviviam com doenças mais sérias. Crianças e a população mais jovem a contraiam de forma branda, porém eram portadores e transmissores para a população de maior risco. Por este fato é que a decisão pelo isolamento era fundamental para conter a transmissão e preservar a vida dos grupos mais suscetíveis.


A relação entre Clarice e Nelson se deteriorava dia a dia. Ela, toda dedicada para Malu, e ele, isolado das duas, quase emudecido em respostas monossilábicas. Ficar em casa era entediante. Ver sua mulher dividida entre a filha e o trabalho online dava-lhe uma sensação de vazio. Algo tinha sido arrancado de dentro dele.


Por mais que procurasse olhar para Clarice com o mínimo de gratidão, afinal ela lhe dera uma filha linda, não conseguia. A chegada de Maria Luiza, para Nelson, era responsável pelo biombo que aos poucos se transformava em muralha, separando marido e mulher.


Quase completando um ano de nascida, Malu ainda não permitia que fossem íntimos, dormindo entre os dois. A menina fazia com que Chapeuzinho Vermelho se separasse totalmente do Lobo Mau, que uivava nas noites à procura de sua fêmea. Sua válvula de escape era surf e kitesurf e, àquela altura, assistir sozinho o pôr do sol do Arpoador. Não conseguia mais enxergar dentro dos olhos de Clarice o faiscar do desejo, pelo contrário, o olhar dela se tornara embaçado, sem brilho, que só surgia quando amamentava. Por mais que Nelson insistisse que era hora de não mais ofertar o seio à filha, ela se recusava: a satisfação de fazê-lo era a responsável por Clarice se perder no tempo, gratificada por alimentar Malu.


Nestes momentos, percebia-se um sorriso de prazer, principalmente quando as mãozinhas de sua filha lhe acariciavam o seio, o colo.

Nelson conhecia muito bem aquela demonstração de satisfação porque aparecia nos momentos de grande prazer, quando os dois se transformavam em amantes, sem limites, quando os segundos, os minutos e as horas paravam, porque a união dos corpos sugava toda a energia do universo. No pensamento de Nelson, ele perdera definitivamente o amor da mulher. Malu sugava até a última gota de todo e qualquer interesse de Clarice por ele. Nunca pensara que a presença de um filho, ao invés de uni-los e despertar novas emoções, servisse, na contramão, para a desunião. Não via num horizonte próximo ou mesmo longínquo, uma saída para resgatar um passado que tanto os unira.


Com exceção da independência profissional, estavam sempre unidos; fosse no pôr do sol, ou mesmo se divertindo na noite dividida entre shows, teatros, as sessões de cinema fora ou em casa, os jantares e o que mais os unia: se amar, se entregar nas madrugadas. Agora, tudo era passado.


Se o arrependimento trouxesse sua felicidade amorosa de volta, retornaria ao ponto no qual uma desinformação ocasionou a gravidez. Por mais que se encantasse com Maria Luiza, por mais que começasse a ensaiar as primeiras silabas - pá, pa ou ma, ma -, estas não eram sinônimos de querer para si aquele modelo de convivência, família. Queria de volta sua liberdade de viver, de amar, de sentir o vento na sua moto de mil cilindradas tendo a mulher que desejava, presa à sua cintura, conduzindo-a pelos caminhos da liberdade que costumeiramente sonhou e desejou e que era realidade até o nascimento de Maria Luiza.


Clarice podia se dizer era o que chamavam de mãe perfeita. Nada no que se referia à sua filha escapava da atenção. Nos mínimos detalhes lá estava seu dedo. Sua antiga companheira, Denise, era quem assumia as tarefas do dia a dia. Denise veio trabalhar com ela desde que Clarice saiu da casa dos pais e passou a morar na Vinícius de Moraes. Lá se iam mais de dez anos. Era sua amiga, confidente e quantas vezes não saíram juntas para as rodas noturnas de samba na Lapa ou no Salgueiro. Depois que se uniu a Nelson, Clarice não as frequentava mais, porém sua amizade quase de irmã com Denise continuou. Era seu braço direito e agora, com o nascimento de Malu, era também seu braço esquerdo.


Nos primeiros meses, para dar apoio principalmente à noite, Denise ficou em tempo integral. Depois do terceiro mês voltou para a rotina diária dela. Denise morava no Morro do Cantagalo, o que facilitava, pela proximidade, sua ida e vinda. Admirava a afinidade e cumplicidade que existia entre sua patroa e o marido, o que para ela era um exemplo de como um casal tinha que conviver. Reservada quanto à relação entre os dois, percebeu o afastamento que estava acontecendo. Notava nitidamente que a chegada de Maria Luiza, ao invés de uni-los, estava distanciando os dois. Aquele amor que acostumara a ver, aquela união, aquele desejo de às vezes até liberá-la mais cedo de suas atividades, deixou de existir. Percebia certo ar de tristeza em Clarice, mas mantinha sua discrição.


Numa manhã, ao chegar ao entrar no apartamento, ouviu um soluçar que vinha do quarto do casal. Ao abrir a porta, viu a amiga e patroa com Malu ao seio, com lágrimas escorrendo-lhe pela face. Sem querer ser indiscreta, perguntou se estava sentindo alguma coisa, se queria algum remédio. Naquele momento, Clarice olhou a amiga, segurou a mão dela e, soluçando, falou:


- Minha amiga, minha companheira de tantos anos. Hoje me sinto sozinha, meu castelo de fantasia desabou!


- Como assim, Dona Clarice? A senhora tem seu Nelson, tem sua filha linda, e tem sua criada que lhe acompanha há tantos anos.


- Não, Denise. Estou num barco à deriva, onde seu timoneiro o abandonou. Eu sei muito bem que tenho Maria Luiza, tenho você, tenho minha família, mas meu coração sofre, estou perdendo Nelson. Desde o nascimento de nossa filha que a cada dia ele está mais distante, enquanto nesse momento sua presença ao meu lado seria a coisa mais importante para mim. Perdi minha liberdade, estou deixando de fazer tudo aquilo o que sempre gostei porque não dá para dividir o ser mãe com a profissional, a esposa e a amante.


Hoje minha cabeça é quase totalmente voltada para dentro de casa, para Malu. O que mais eu preciso neste momento não é um grande amante, não tem como ser tudo ao mesmo tempo. Enquanto você é profissional, você extravasa suas alegrias e tristezas vivendo a vida da melhor maneira, e amar e ser amada, se entregar nas teias da paixão reforça suas energias, te dá brilho no olhar, você irradia energia à sua volta. Quando a mãe entra em você é tudo maravilhoso, porque um sentimento novo te absorve e desta forma quer viver cada momento intensamente. Quando a mãe se exterioriza, ela é dominante. Não consigo me desligar de Malu, por mais que ame Nelson. Ela é dependente de mim. O que mais quero neste momento não é meu amante, nem meu marido, nem o pai de Maria Luiza, e sim meu companheiro, que pegue minha mão, me abrace, me olhe, que me diga o que quero ouvir naquele instante:


- Amo você e minha filha!

- Infelizmente, Denise, não consigo enxergar isto nele. Percebo sua decepção por não poder satisfazer seus desejos, ser seu objeto de diversão naquele momento e ele, o meu. Uma relação, minha amiga, tem que ser boa para os dois. E não estou preparada ainda para voltar ao mundo dos prazeres. Se às vezes o faço, é por pura insistência do lado dele e para tentar mantê-lo minimamente preso a nós. Percebo sua frustação e até um olhar fulminante quando no meio de nossos encontros casuais Malu acorda e não penso mais em nada, não tem mais clima para nada. Talvez você entenda agora porque estou do jeito que me encontrou. Não sei o que fazer! Hoje minha filha está em primeiro lugar, não estava em meus planos ter um filho agora, mas assim a Providência Divina quis. Segundo o que aprendi com minha mãe, podemos ser tudo, podemos ser a melhor em tudo na vida, mas se não formos boa mãe, de nada valeu tudo aquilo que conquistou.


- Olhe, Dona Clarice, de uma coisa a senhora pode estar certa. Conheço muita gente que se diz mãe, mas a senhora não se diz, a senhora é mãe com as três letras e o acento. A dedicação que tem pouco vejo principalmente nas mulheres do seu nível, que colocam sempre a vaidade na frente, entregam a criação de seus filhos para babás, creches, voltam logo às festas, academias. Mesmo lá na minha comunidade, nos deparamos muito com isso. A menina tem seus filhos cedo e as avós é que se viram porque viver é mais importante do que ser mãe. A senhora, não. Quantas vezes vi sua mãe ou sua sogra aqui para saírem? Que me lembre, nunca. Não sofra, nem se magoe. Porque a vida é uma só, aquele lá de cima vê tudo, e só Ele é capaz de nos julgar e de nos dar o caminho a seguir.

Continue sendo o que a senhora é, pelo menos lá na frente, no futuro, quando se deparar com sua Maria Luiza mulher feita, vai se lembrar que tem dentro dela um pedaço da Clarice. Eu sou testemunha.

- Eu sei disso, minha mãe é meu exemplo, porém, ao contrário de Nelson, meu pai nunca saiu do lado dela.

- Dona Clarice, não faça de seu pai um modelo. A maioria dos homens nos enxerga como aquelas que lhes satisfarão por alguns minutos, depois voltamos a ser o que acham que somos a maioria do tempo. Haja o que houver, a senhora nunca estará sozinha, porque estarei sempre ao seu lado e, tenho certeza, sua família também.


Naquele instante Malu acordou, seu olhar direcionou-se para as duas, um sorriso inocente fez se calarem e sorrirem também. O que parecia ser uma epidemia restrita a determinadas regiões da Terra, na verdade foi se avolumando e se transformando num surto e abrangendo vários continentes. Do primeiro caso relatado em fins de fevereiro no Brasil, na cidade de São Paulo, a pandemia da Covid-19 se alastrou rapidamente para vários estados. Os governos estaduais e as prefeituras começavam a tomar suas providências para tentar conter a disseminação.


Nelson ignorava o mundo externo e embora as notícias de que o isolamento era a melhor forma de se prevenir, na maior parte do tempo preferia estar fora de casa a ficar em companhia de Clarice e Maria Luiza. Não se sentia mais à vontade com as duas, não conseguia mais trocar duas palavras com sua esposa, muito menos pegar a filha no colo ou mesmo brincar com ela. Para se isolar, mergulhava nas suas atividades profissionais, na internet ou surf e kitesurf.


Há algum tempo, vinha amadurecendo abrir seu relacionamento, não tinha mais condições de manter seu casamento. Os elos que os uniam foram se quebrando depois do nascimento de Malu e ele estava aguardando o melhor momento para poder dizer a Clarice o que acontecia dentro dele. O sonho do amor eterno durou até que acabou, teria que recomeçar sua vida. Todos os planejamentos de um casamento e de uma união que mantivesse eternamente o fogo da paixão, a atração dos corpos e a interação de desejos e fantasias se aspergiram no ar com os primeiros choros e soluços de Maria Luiza.


Voltaria a morar com seus pais, seria o melhor para ele e para sua mulher. E para a filha também. Por mais que tivesse insistido em colocar sua filha numa creche, em deixá-la alguns fins de semana com seus pais ou os pais de Clarice para que pudessem ter a liberdade de viver a vida que sempre levaram, a esposa relutava. Malu ainda era muito dependente dela, embora se acostumasse com outros tipos de alimentação que não fosse o leite materno, não conseguia largar o seio. Pela manhã, à tarde e para dormir a oferta era sagrada, fora que no meio da madrugada acordava e só conseguia dormir novamente pendurada no peito da mãe. Ele virara um mero espectador da relação entre as duas. O que sobrava para ele eram migalhas, migalhas de um amor que fora roubado dele. Não queria viver mais aquela situação.


As únicas pessoas com quem Clarice trocava confidências sobre a crise no seu relacionamento após o nascimento da filha era com sua amiga e secretária do lar, como chamava Denise, e com Maria da Conceição, sua mãe. Esta, com toda sua experiência de vida, tentava mostrar que era apenas um momento em que os homens não conseguiam enxergar que nada lhes estava sendo tirado, pelo contrário:


- Minha filha, você tem que ser mais compreensiva com os rompantes do seu marido porque dentro dos homens não habita o mesmo sentimento de proteção aos filhos que existe nas mulheres. Nós sentimos as mudanças mesmo antes de nos sentirmos grávidas. Passamos nove meses, perdemos nossas identidades. O mais importante para eles passa ser aquele que está dentro de você, preferencialmente se este for um menino. Deixamos de ser a primeira pessoa e passamos a ser a segunda, ninguém mais nos chama pelo nome, só perguntam pelo bebê. Quando nossos esposos chegam em casa, a primeira coisa que querem saber é como vai o filho, se cuidamos e o alimentamos direito.


A maioria dos homens passa por este período com maior ou menor intensidade, alguns passam a ter ciúmes do seu futuro filho, outros se sentem orgulhosos por provarem à sociedade que têm a condição de macho reprodutor. Muitos não conseguem perceber que passam a ter ao seu lado uma companheira sensível aos novos sentimentos, porém, muitas vezes debilitadas emocionalmente. As mudanças que acontecem em nossos corpos acontecem aceleradamente e nossos encantos, que tanto os atraem, são trocados por nossa necessidade de proteção e por nossas carências que ficam amostra. Na verdade, minha filha, o estar grávida é um curso intensivo de como ser mãe, que leva nove meses. Ao final deles, estamos preparadas para lidar com nossa pérola, nós a cultivamos dentro de nossa concha. Nem sempre nossos companheiros nos seguem nessa bela e difícil etapa da vida.


- Mãe, enquanto eu estive grávida, Nelson era o homem mais maravilhoso que eu conheci. Atendia a todas as minhas vontades, aos meus desejos, me protegia, nos amávamos nos limites da loucura quase diariamente. Depois do nascimento de Maria Luiza, perdi todos os meus encantos, sou nada, sou ninguém. Hoje, Nelson exige que eu volte quase que por encanto a ser a mulher-desejo, a mulher-amante, sem limites nas suas fantasias, aquela que era antes do nascimento de nossa filha.


– Como assim? - Mãe, entre nós surgiu Malu, que nos impõe limites, porém, não é só ela. Meu corpo, meu interior também, não consigo dissociar a amante sem limites da mãe sem barreiras. Esta é muito mais exigente e inibe qualquer coisa, se interpõe entre nós de tal forma que não consigo dizer sim para ele e não para minha filha. O poder dela em mim é maior do que o desejo carnal de Nelson. Não sei o que fazer. Ele tem ciúmes de nossa relação de mãe e filha, mas eu não quero perdê-lo. Eu o amo, mas, neste momento, não o desejo, não desejo seu corpo, suas carícias, quero simplesmente ele ao meu lado, junto de mim, quero a proteção dele.


Necessito de sua companhia, meu amigo, meu marido. Preciso dele como pai de Maria Luiza, mas, apesar disso, sinto que ele deseja somente satisfazer suas fantasias, trazer de volta a mim como amante, ou seja, meu corpo. Infelizmente, a Messalina preferida dele está adormecida.

Mãe e filha se abraçaram até que Malu, engatinhando, se interpôs entre as duas.


Ato contínuo, as duas se levantaram e a envolveram ao mesmo tempo. Coração de mãe, avó e da filha/neta bateram num mesmo ritmo. Malu sorriu seu sorriso inocente. Maria da Conceição e Clarice deixaram escorrer lágrimas pela face. A pequena Maria Luiza parecia ter entendido toda a conversa e querer dar um recado, não veio para desunir, pelo contrário.


A visita de Maria da Conceição à Clarice, na verdade, tinha o propósito dos preparativos da festa de aniversário da neta. Faltavam três semanas. Apesar de Clarice ser contrária à comemoração e Nelson se mostrar indiferente, ou seja, nem sim nem não, os avós dos dois lados faziam questão: era a primeira neta de ambos e seria uma comemoração de princesa.


Tudo correria por conta dos avós, melhor dizendo das avós, que há meses se reuniam planejando tudo. Desde a roupa que vestiria, passando pelo salão de festas, o bufê e os convidados. Aos pais caberia somente o nome desses convidados. Como diziam Maria da Conceição e Cleide era a festa de aniversário da neta e ponto final.


Nelson, depois de um dia inteiro fora de casa, resolveu conversar com Clarice sobre ter se tornado impossível a convivência entre os dois. A cada dia que passava estavam mais distantes e este não era o tipo de vida que escolhera para ele. Naquele domingo, 15 de março, daria por terminado seu relacionamento, seu casamento, libertaria Clarice dos votos de união eterna e somente não sairia de casa de imediato, respeitando a alegria de seus pais e os de Clarice que preparavam há algum tempo o aniversário da neta para sábado, dia 28 de março.


Aquele fim de semana parecia interminável para Nelson, afinal era o dia no qual daria um fim a tudo. Clarice e Malu para um lado e ele, para outro. A única coisa que esqueceu foi de avisar para sua filha da decisão. À tarde, Malu começou a ter febre alta, o que os levou a procurar uma emergência pediátrica. Uma infecção de garganta importante os obrigou a passar a noite ao lado da menina e todo o planejamento de Nelson ficou adiado para assim que a filha melhorasse.


Não seria justo, num momento como este, discutir a separação do casal.

Depois de dois dias internadas, na manhã de terça-feira, 17 de março, Maria Luiza obteve alta. Não tinha mais febre e estava de volta o sorriso que contagiava a todos. Ao contrário do que sempre fazia, quando a enfermeira a trouxe, mergulhou imediatamente em direção a Nelson, que não sabia nem como segurá-la. Por mais que Clarice tentasse pegá-la, se recusava a sair do colo do pai, o que nunca fizera antes. Ele, por sua vez, não sabia nem o que dizer para a filha, não estava acostumado a ficar em sua companhia, somente a via de longe.


Quando chegaram em casa, Denise deu a notícia de que estavam decretando a quarentena no Rio de Janeiro, em virtude do aumento do número de pessoas acometidas pelo coronavírus. Como os pais da doméstica eram idosos e portadores de outras doenças que colocavam em risco as vidas deles se adquirissem a doença, este seria o último dia que viria trabalhar.

Clarice entendeu imediatamente a preocupação de sua secretária do lar, era justo que tomasse aquela atitude, que se preocupasse com os pais. No mesmo instante virou para Nelson e falou:


- É, meu querido, pelo jeito agora seremos só nós dois e Malu. Acho que até mesmo a festa que nossas mães prepararam com tanto carinho para o aniversário de nossa filha vai ficar para mais tarde ou para o ano que vem. Pelo jeito, vamos nos isolar também, porque as preocupações que Denise tem com seus pais devem ser semelhantes as que precisamos ter com os nossos. O amor que temos por eles nos impõe ficar longe de qualquer convivência.


Nelson, por mais que eu sinta e você também, enquanto perdurar essa epidemia, teremos que nos comunicar com eles pelo whatsapp, skype, pela internet, e por mais que queiramos estar juntos, teremos que ficar separados. Nós somos um risco para eles, e se os amamos teremos que nos afastar. A nossa ausência será a nossa maior forma de protegê-los.


A decepção estava estampada no rosto de Nelson, tinha se preparado para adquirir sua liberdade plena e agora teria que ficar preso num espaço sem a energia que os contagiara, seria obrigado a conviver, não sabia até quando, num ambiente que nada mais tinha a ver com ele. Até mesmo suas atividades profissionais, que neste momento era um oásis onde mergulhava e se esquecia de tudo, estavam limitadas a tão e somente os contatos em homeoffice, bem como os de Clarice. Era uma forma de darem continuidade às suas atividades, evitar contágio e transmissão. O destino nunca lhe pregara uma peça como esta.


Naquele momento quem mais sentiu foram as avós, que viram seus sonhos referentes ao aniversário de Malu rolarem quarentena abaixo. Por mais que insistissem em realizar, todas as dificuldades foram sendo colocadas; cancelamento do salão de festas, do bufê e dos próprios convidados. Não havia o que fazer e seria melhor assim do que expor a todos a um risco com consequências imprevisíveis.


À noite se fez e Nelson, encostado no parapeito da janela, viu o Corcovado e o Redentor iluminado em verde, numa homenagem a São Patrício. Lembrou-se dos ensinamentos religiosos de seus pais quando citavam o exemplo baseado no trevo de três folhas usado pelo Santo Irlandês para explicar a Santíssima Trindade. Eram três folhas fazendo parte de um só tronco, fazendo com que voltasse para dentro de si, do núcleo, que querendo ou não fazia parte.


Do mesmo ângulo, viu por trás da imagem do Redentor uma lua minguante trazendo junto consigo o planeta Vênus, a nossa Estrela Dalva. Imediatamente, lhe veio à cabeça que assim como a lua mingua, o amor também. Tinha certeza de que fizera tudo para manter seu castelo. Não lhe faltaram iniciativas para que trouxesse Clarice para dentro dele novamente. Seu desejo por sua Chapeuzinho Vermelho continuara o mesmo, porém fora ela quem quebrara os alicerces da relação, ela havia construído uma barreira instransponível entre os dois. E esta tinha nome e forma, Maria Luiza. Sua chegada acabou com todos os sonhos e desejos de Nelson.


Neste instante, do berço onde estava Malu, ele ouviu:

- Pa, pa; Pa, pa.


Virou-se rapidamente em sua direção e um sorriso inocente era como um convite para pegá-la do berço. Sem saber o que fazer, saiu sem graça da janela e foi para a sala enquanto Clarice tomava a filha no colo, pois era hora de dar a medicação que fora passada e também de amamentá-la.


Naquela noite, os dois passaram longo tempo conversando com seus pais, convencendo-os de que a maior demonstração de amor e carinho que tinham por eles era vê-los bem, saudáveis e que suas ausências não significavam abandono, mas sim respeito pela vida, pelas suas vidas.

Enquanto falavam com seus pais, o sentimento de amor por eles se aflorara.


Neste momento, por acaso ou não, quem veio engatinhando do quarto até os dois foi Maria Luiza, que parou entre o pai e a mãe com seu sorriso inocente e seus monossílabos:

- pa, pa; ma,ma.


Nelson perdeu toda ação, Clarice chorou. Os avós que ainda estavam na tela escutaram a neta e quiseram vê-la. Malu parecia querer encher o vazio que se construía entre os dois. Era como se estivesse entendendo o que estava se passando, e que tivesse que interferir. Sua presença parecia querer fazer uma aliança com seus avós para reaproximar seus pais. Depois de muito sorriso e bocejos de Maria Luiza, desligaram.


Já era madrugada quando Nelson veio se deitar, ocupando seu tempo assistindo séries intermináveis. Só se rendeu ao sono quando a cabeça balançou, os olhos fecharam e foi se deitar ao lado de Malu e Clarice.


Quando se aninhou, virou de costas, sentiu alguma coisa bem leve acariciar-lhe. Imediatamente associou que era sua Chapeuzinho Vermelho que retornava de seu longo sono. Quando se virou, chorou. Não pelo amor que se espelha no desejo, mas de vergonha, de arrependimento, de autocrítica. Quem lhe acariciava as costas, dormindo como se fosse um anjo, era a filha.


Maria Luiza, que dormia entre os dois, colocou uma de suas mãozinhas em cima de sua mãe, a outra em seu pai, como se estivesse querendo dizer que era a grande união entre eles, que não viera ao mundo para separá-los.

Clarice acordou com o choro e o soluço, não de sua filha, mas de seu Lobo Mau, de Nelson. Sem que soubesse o que se passava, sentou no chão ao lado da cama onde estava. Nada falou, só o abraçou, e aí mais ele soluçou. Malu dormia e um sorriso era tudo que demonstrava. Não conseguia entender a reação de seu marido.


Nos dias que se seguiram, a rotina do casal foi se alterando. Sem Denise para tomar conta dos afazeres domésticos, Clarice tinha que se dividir entre o lar, a filha e o marido. Nelson, por mais que se sensibilizasse com sua filha, mantinha a ideia fixa da separação, a única coisa que mudara fora a convivência com a filha e Clarice. Esta era toda atenção com a menina, apesar de estar mais próxima dele como esposa. A despeito de toda transformação, o que mais o levava a ter o desejo de liberdade, era a ausência da sua Chapeuzinho Vermelho. Quando abriu a porta do armário, via suas fantasias, gatilhos para a aproximação entre eles naquele Sábado de Carnaval de 2015.


Enquanto Clarice dormia somente durante os intervalos que Maria Luiza permitia, Nelson mergulhava em sonos profundos nos quais seus sonhos o levavam à sua infância, coisa que nunca acontecera. Não era afeito a sonhar e principalmente com tempos que não mais se lembrava. Quando o fazia estava sempre no momento presente, enquanto que antes da gravidez quantas vezes não acordara despertando sua Chapeuzinho Vermelho para darem um final feliz aos seus delírios oníricos?


Nestas duas semanas em que estavam vivendo juntos em virtude da quarentena, nos sonhos dele, ainda era criança e estava com os pais ao seu lado em diversas situações. Estas quimeras ocorriam toda noite e nelas estavam de mãos dadas no Cristo Redentor, ou no Pão de Açúcar, no Jardim Zoológico e até mesmo em um jogo de futebol no Maracanã com o pai, Douglas, assistindo um jogo do time do coração dos dois, o Fluminense.


Clarice continuava com suas funções de mãe, profissional de Comunicação e Marketing e dona de casa. Ele na área da programação, porém, não conseguia sensibilizá-la. Seu novo momento de mãe, esposa, mulher e amante impedia-o de programá-la para voltar ao passado. Viviam em frequência e sintonias diferentes. Naqueles dias de aprisionamento compulsório a única coisa que ainda os ligava, e que lhes uniam, era Malu. No entanto, ali não existia atração alguma entre homem e mulher, ali era o amor em sua forma conclusiva, o seu fruto. Os dois passaram a amá-la na mesma intensidade. Nestas semanas que se passaram, era comum os avós se comunicarem no mesmo horário e conviverem juntos, sendo Maria Luiza sempre o centro das atenções.


Nelson, embora não afeito aos serviços domésticos, começou a dividi-los com Clarice. O céu soturno escondia por trás das nuvens o Corcovado e o Redentor, o ribombar das ondas nas areias da praia de Ipanema remoinha lembranças passadas. Clarice agasalhava Maria Luiza, que chorava no seu colo, do frio que o outono trazia no balançar das folhas que caíam. Nelson meio se escondia, meio se acostumara a se apresentar como pai.


Da janela vizinha, uma voz bem carioca, era o Chico Carioca Buarque de Holanda, que não pediu licença para entrar e vinha como um acalanto, mais do que isso, com uma mensagem que tocou o coração de Nelson naquela tarde, quase noite fria, ao som do marulhar das ondas de Ipanema.


“É comum a gente sonhar, eu sei

Quando vem o entardecer

Pois eu também dei de sonhar

Um lindo sonho de morrer

Vejo um berço e nele eu me debruçar

Com o pranto a me correr

E assim chorando acalentar

O filho que eu quero ter

Dorme meu pequenino

Dorme que a noite já vem

Teu pai está muito sozinho

De tanto amor que ele tem

De repente o vejo se transformar

Num menino igual a mim

Quando vem correndo a me beijar

Quando eu chegar lá onde vim

Um menino sempre a me perguntar

Um porque que não tem fim

Um filho a quem só queira bem

E a quem só diga sim

Dorme menino levado

Dorme que a vida já vem

Teu pai está muito cansado

De tanta dor que ele tem

Quando a vida enfim me quiser levar

Pelo tanto que me deu

Sentir-lhe a barba me roçar

No derradeiro beijo seu

E ao sentir também sua mão vedar

Meu olhar dos olhos seus

Ouvir-lhe a voz e me embalar

Num acalanto de adeus...

Dorme meu pai, sem cuidado.

Dorme que ao entardecer

Teu filho sonha acordado

Com o filho que ele quer ter...

O ambiente musical, o poema do poeta mais carioca dos cariocas, o fim de tarde, o soar das ondas o fez surfar nas suas ondas preferidas, e se viu em cima de sua prancha a se equilibrar. A tarde fazendo piruetas e ele sendo levado pelo vento no kitesurf. Não conseguia mais se ver surfando ou no kitesurf sozinho porque junto dele lá estava ela, Malu, se equilibrando na prancha e confiando na segurança que o pai lhe dava. O vento os carregava para longe, ela sorria. Na praia, o ar satisfeito da Chapeuzinho Vermelho à espera do seu Lobo Mau.


Algum tempo depois, o que não era seu costume, acabou mergulhando em um sono profundo. E neste lá estava surfando, voando no kitesurf, assistindo o pôr do sol do Arpoador junto à Clarice e Maria Luiza. A única diferença era que não era ele. Era o Lobo Mau e Clarice, a Chapeuzinho Vermelho, além de Malu, a filha dos dois.


Quando acordou a noite ia alta e Clarice amamentava sua filha. Nelson as admirou, sorriu. Sentou-se ao lado dela abraçou-a, e passou a admirar a filha, que não se fez de rogada, esticou o braço e com sua mãozinha acarinhou o pai, que se emocionou. Malu dormiu profundamente e mãe a colocou no berço. Nelson não sabia se ia ou se vinha, olhava para Clarice com um olhar de mãe, esposa e alguma coisa de amante.


Aos poucos o céu foi se abrindo, da janela via-se o Corcovado e o Redentor. Nelson estava admirando o cenário, perdido em pensamentos. Sem que percebesse, Clarice se juntou a ele, envolveu-o pela cintura e o beijou. Sem que pedissem ou programassem um fundo musical, o saxofone de um músico anônimo solou para toda a Rua Vinícius de Moraes escutar o poema maior de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, Corcovado.


Um cantinho, um violão

Este amor, uma canção

Pra fazer feliz

A quem se ama

Muita calma pra pensar

E ter tempo pra sonhar

Da janela vê-se o Corcovado O Redentor Que lindo

Quero a vida sempre assim

Com você perto de mim

Até o apagar da velha chama

E eu que era triste

Descrente deste mundo

Ao encontrar você

Eu conheci

O que é felicidade

Meu amor.

Depois de algum tempo, Clarice foi ver a filha que dormia a sono solto, o entreabrir de seus lábios mostravam um sorriso indecifrável. Nelson não sabia o caminho a seguir, estava totalmente confuso. Quando se deu conta, na sua frente uma champanhe, duas taças e sua Chapeuzinho Vermelho. Ele não acreditou. Da janela, o saxofone continuava a lhes dizer que:


- Quero a vida sempre assim

Com você perto de mim

Até o apagar da velha chama.

Neste momento, o Lobo Mau uivou, a Chapeuzinho Vermelho era a fêmea que despertara de uma longa hibernação, tudo que queriam agora era viver o amor que os uniu. Maria Luiza dormia o sono de quem sorria na sua inocência, mas o sorriso da união. Desculpas e juras de amor se fizeram ao som das ondas; o Corcovado e o Redentor se mostravam lindo de seu leito de amor e o nascer do sol era o que precisavam para abençoar a união dos dois. Para depois da quarentena, faziam planos de levar o fruto de seu amor para correr com Clarice no calçadão. Queriam apresentar para a menina o surf e o kitesurf de Nelson e, mais do que isso, queriam levá-la para ver o pôr do sol nas Pedras do Arpoador, onde o amor nasceu, cresceu e deu fruto, para que recebesse e abençoasse também a ela, Maria Luiza, a Malu deles dois. Bendito seja a quarentena, bendito seja o amor que o pôr do sol do Arpoador abençoou.


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