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AS CIGARRAS E A AVE MARIA

José Leonídio

São seis horas da tarde. É a hora do Angelus e a “Ave Maria” de Franz Shubert faz-se ouvir. Neste instante parece que tudo cessa, que todos se aquietam para ouvi-la.


Quando termina, numa sintonia perfeita, as cigarras[1] iniciam sua cantoria que, segundo os mais antigos, é o prenúncio de dias ensolarados.


Me acostumei a esta rotina, incluindo também o badalar dos sinos nas horas cheias. São valores que ficam dentro de nós, e que o tempo não consegue apagar. Sons, odores, cores, sabores, sensações tácteis. São informações que guardamos e que volta e meia trazem lembranças de experiências vividas, que permitem que aflorem no presente para nos conduzir no futuro.


Na fábula de Jean de La Fontaine “A Cigarra e a Formiga”, a cigarra é vista como a que só que viver o prazer dos dias quentes e ensolarados e que no cair da noite canta sem parar para sua amada. Aquela que esquece que tem outono, inverno e primavera, que só vive os dias cálidos do verão. A formiga, ao contrário, trabalha incessantemente para garantir a comida o ano todo.


Assim nos foi contado e passamos todo tempo pensando nestas duas vertentes: a prudência e o viver intensamente o dia a dia. Acostumamos a ver a cigarra, como um ser sem projetos, sem ambições, que só canta e prenuncia o sol. A formiga, como o ser perfeito, com metas a cumprir, que vive numa comunidade irretocável, onde cada um tem uma função que se encaixa como uma engrenagem perfeita.


Quando olhamos de uma outra forma, quando abandonamos a versão que nos foi ensinada e mudamos a maneira de analisá-la, percebemos que as duas se inserem no ambiente com suas funções. As cigarras cantam prenunciando o verão, no qual a presença do sol e da chuva são os elementos necessários para brotar das sementes oriundas da estação do amor, brotar novas vidas.


As cigarras também cantam para afastar os seus predadores e das outras espécies que estão no seu entorno, seu som estridente não é tolerado pelas aves.


As formigas cuidam da sua comunidade, as cigarras se preocupam com a proteção à vida. Cessado o verão, elas se recolhem para voltar no fim da próxima primavera. Elas não explodem de cantar, elas só amam e protegem seu habitat.


Quando no fim da tarde ouvimos “Ave Maria” de Franz Shubert e a sinfonia das cigarras até a noite se faz presente, me dá a impressão de que a natureza tenta dar continuidade a beleza contida dentro de Maria, a mãe de Jesus Cristo, através da composição musical; é a continuidade da vida através do amor, seja o iniciado na primavera, ou mesmo dos machos à procura de suas fêmeas.


A observação da natureza, associada aos movimentos que fazemos no dia a dia, ou a tudo que está se passando no nosso entorno, nos possibilita colher informações importantes, que nos levam a decodificar aquilo o que é plantadi dentro de nós, na infância ou mesmo na adolescência.


Somos frutos de conhecimentos que absorvemos. Funcionamos como esponjas ao longo da vida, gravando na memória. Nossa capacidade de analisar e tirar conclusões são o que nos dá o poder de reescrevê-las com o nosso olhar e o que será importante para as decisões que tivermos que tomar nas diversas situações que a vida nos impuser.


A liberdade de agir por si só, de tomar as próprias decisões, assumir erros e acertos é somente nossa. Podemos até dividi-la, porém nosso quinhão tem de ser aceito e respeitado, porque somos unos, não existe outro igual a mim ou como você.


A Ave Maria de Franz Shubert e o canto das cigarras são duas situações absolutamente diferentes no fim da tarde, porém se complementam e nos mostram o lado belo da vida, da natureza.

[1] Cigarra - Nome científico – Cicadoidea – Família dos Hemipteros.

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